Nos EUA, pesquisa mostra que células T modificadas vencem câncer em pacientes
UOL, 19-09-2011
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Um ano atrás, quando a quimioterapia parou de funcionar contra sua leucemia, William Ludwig se inscreveu para ser o primeiro paciente em um experimento ousado na Universidade da Pensilvânia. Ludwig, então com 65 anos, um oficial de justiça aposentado de Nova Jersey, sentia sua vida se esvair e pensou que não tinha nada a perder.
Os médicos retiraram um bilhão de suas células T - um tipo de célula branca do sangue que combate os vírus e tumores - e lhes deram novos genes que iriam programar as células para atacar o câncer. Depois, as células modificadas foram injetadas lentamente nas veias de Ludwig.
No início nada aconteceu. Mas depois de dez dias foi um inferno em seu quarto de hospital. Ele começou a tremer com calafrios. Sua temperatura subiu em disparada. A pressão sanguínea despencou. Ele ficou tão doente que os médicos o transferiram para a UTI e advertiram que ele poderia morrer. Sua família se reuniu no hospital, temendo o pior. Algumas semanas depois a febre desapareceu, e também a leucemia.
Não havia vestígio dela em nenhum lugar - nenhuma célula leucêmica em seu sangue ou na medula, nem nódulos linfáticos inchados em sua tomografia computadorizada. Os médicos calcularam que o tratamento havia matado um quilo de células cancerosas.
Um ano depois, Ludwig continua ótimo. Antes havia dias em que ele mal conseguia sair da cama; hoje ele joga golfe e trabalha no jardim. "Estou vivo novamente", ele disse.
Os médicos de Ludwig não afirmaram que ele está curado - ainda é cedo demais para dizer isso - nem declararam vitória contra a leucemia com base nesse experimento, que envolveu apenas três pacientes. Eles dizem que a pesquisa ainda tem muito a andar. E o tratamento ainda é experimental, não está disponível fora de estudos.
Mas cientistas dizem que o tratamento que ajudou Ludwig, relatado recentemente em "The New England Journal of Medicine" e em "Science Translational Medicine", pode significar um ponto de virada na longa luta para desenvolver terapias genéticas eficazes contra o câncer. E não apenas para pacientes de leucemia: outros cânceres também podem ser vulneráveis a essa nova abordagem - que emprega uma forma desativada de HIV-1, o vírus que causa a Aids, para transportar os genes que combatem o câncer para as células T dos pacientes.
Em suma, a equipe está usando a terapia genética para realizar algo que os pesquisadores esperavam fazer há décadas: treinar o sistema imunológico da própria pessoa para matar as células cancerosas.
Dois outros pacientes passaram pelo tratamento experimental. Um teve uma remissão parcial: sua doença cedeu, mas não desapareceu completamente. Outro teve uma remissão total. Os três haviam tido leucemia linfocítica crônica (LLC) avançada e haviam esgotado as opções de quimioterapia. Geralmente, a única esperança de remissão nesses casos é um transplante de medula óssea, mas esses pacientes não se aplicavam a isso.
O doutor Carl June, que liderou a pesquisa e dirige medicina translacional no Centro de Câncer Abramson da Universidade da Pensilvânia, disse que os resultados surpreenderam a ele e a seus colegas, os doutores David L. Porter, Bruce Levine e Michael Kalos. Eles esperavam ver algum benefício, mas nem sonhavam com remissões completas e duradouras. De fato, quando Ludwig começou a ter febre, os médicos não perceberam a princípio que era um sinal de que suas células T estavam travando uma batalha furiosa com o câncer.
Outros especialistas do campo disseram que os resultados foram um grande avanço.
"É um excelente trabalho", disse o doutor Walter J. Urba, do Centro de Câncer Providence e Instituto de Pesquisa Earle A. Chiles em Portland, Oregon. Ele considerou a recuperação dos pacientes notável, animadora e significativa. "Estou muito positivo sobre essa nova tecnologia. Conceitualmente é muito, muito importante."
Urba disse que pensa que a abordagem um dia será usada contra outros tipos de câncer além de leucemia e linfoma. Mas advertiu que "para os pacientes hoje ainda não está no ponto". E acrescentou a habitual advertência científica: para serem considerados válidos, os resultados devem ser repetidos em mais pacientes e por outras equipes de pesquisa.
June chamou as técnicas de "um apanhado da informação da revolução biológica molecular das últimas duas décadas".
Encontrando o pote de ouro
Para fazer as células procurarem e destruírem o câncer, os pesquisadores devem equipá-las para fazer várias tarefas: identificar o câncer, atacá-lo, multiplicar-se e persistir dentro do paciente. Vários grupos de pesquisa vêm tentando fazer isso, mas as células T que eles criaram não puderam realizar todas as tarefas. Em consequência, a capacidade das células de combater tumores geralmente foi temporária.
A Universidade da Pensilvânia parece ter acertado todos os alvos ao mesmo tempo. Dentro dos pacientes, as células T modificadas pelos pesquisadores se multiplicaram para 1.000 a 10.000 vezes o número injetado, eliminaram o câncer e depois gradualmente diminuíram, deixando uma população de células de "memória" que pode proliferar rapidamente de novo se necessário.
Os pesquisadores dizem não ter certeza de quais partes de sua estratégia funcionaram - técnicas especiais de cultura celular, o uso de HIV-1 para carregar novos genes para as células T ou os trechos particulares de DNA que eles escolheram para reprogramar as células T.
O conceito de modificar geneticamente as células T foi desenvolvido nos anos 1980 pelo doutor Zelig Eshhar do Instituto Weizmann de Ciência em Rehovot, Israel. Ele envolve adicionar sequências genéticas de diferentes fontes para permitir que as células T produzam o que os pesquisadores chamam de receptores de antígenos quiméricos, ou CARs, na sigla em inglês - complexos de proteína que transformam as células em "assassinos seriais", nas palavras de June.
A doença de Ludwig, a leucemia linfocítica crônica, é um câncer de células B, a parte do sistema imunológico que normalmente produz anticorpos para combater infecções. Todas as células B, sejam saudáveis ou leucêmicas, têm na superfície uma proteína chamada CD19. Para tratar pacientes com a doença, os pesquisadores esperavam reprogramar suas células T para encontrar a CD19 e atacar as células B que as carregavam.
Mas quais sequências de genes deveriam ser usadas para reprogramar as células T, de que fontes? E como inseri-las?
Vários grupos de pesquisa usaram métodos diferentes. Os vírus são muitas vezes usados como transportadores (ou vetores) para inserir DNA em outras células, porque esse tipo de sabotagem genética é exatamente no que os vírus em geral são especializados. Para modificar as células T de seus pacientes, June e seus colegas experimentaram uma abordagem ousada: usaram uma forma desativada de HIV-1. Eles foram os primeiros a usar o HIV-1 como vetor na terapia genética para pacientes de câncer (o vírus tinha sido usado em outras doenças).
O vírus é ideal para esse tipo de tratamento, disse June, porque ele evoluiu para invadir as células T. A idéia de colocar qualquer forma do vírus da Aids em pessoas parece um pouco assustadora, ele reconheceu, mas o vírus usado por sua equipe foi "eviscerado" e não era mais nocivo. Outros pesquisadores haviam modificado e desabilitado o vírus acrescentando DNA de seres humanos, camundongos e vacas, e de um vírus que infecta marmotas e outro que infecta vacas.
Cada trecho foi escolhido por uma característica especial, e todos foram reunidos em um vetor que June chamou de "solução do tipo Rube Goldberg" e "um verdadeiro zoológico". "Ele incorpora a capacidade do HIV de infectar as células, mas não de se reproduzir", ele disse.
Para administrar o tratamento, os pesquisadores coletaram o maior número possível de células T dos pacientes, passando seu sangue por uma máquina que removia as células T e devolvia os outros componentes do sangue. As células T foram expostas ao vetor, que as transformou geneticamente, e depois foram congeladas. Enquanto isso, os pacientes recebiam quimioterapia para eliminar as células T restantes, porque as células T nativas poderiam impedir o crescimento das modificadas. Finalmente, as células T foram difundidas de volta nos pacientes.
O tratamento eliminou todas as células B dos pacientes, tanto saudáveis como leucêmicas, e continuará a fazê-lo enquanto as novas células T persistirem no corpo, o que poderá ser para sempre (e deveria ser, para manter a leucemia afastada). A falta de células B significa que os pacientes podem ficar vulneráveis a infecção e precisar de infusões periódicas de uma substância chamada imunoglobulina intravenosa para protegê-los.
Até agora, a falta de células B não causou problemas para Ludwig. Ele recebe as infusões a intervalos de alguns meses. Ele já as recebia antes do tratamento experimental, porque a leucemia já tinha matado suas células B saudáveis.
Uma coisa que não está clara é por que o Paciente 1 e o Paciente 3 tiveram remissões totais, e o Paciente 2 não. Os pesquisadores disseram que quando o Paciente 2 desenvolveu calafrios e febre ele foi tratado com esteroides em outro hospital, e as drogas podem ter interrompido a atividade das células T. Mas eles não podem ter certeza. Também pode ser que sua doença fosse grave demais.
Os pesquisadores escreveram todo um artigo científico sobre o Paciente 3, que foi publicado no "The New England Journal of Medicine". Assim como os outros pacientes, ele teve febre e se sentiu mal, mas a reação demorou mais para começar e ele também desenvolveu problemas de rins e fígado - um sinal de síndrome de lise tumoral, uma condição que ocorre quando grande número de células cancerosas morrem e eliminam seu conteúdo, o que pode entupir os rins. Ele recebeu medicamentos para evitar danos aos rins e teve uma remissão total.
O que o artigo na revista não mencionou foi que o Paciente 3 quase não foi tratado.
Por causa de sua doença e alguns problemas de produção, segundo os pesquisadores, eles não puderam produzir para ele uma quantidade de células T modificadas semelhante à dos outros dois pacientes - apenas 14 milhões ("uma dose de camundongo", disse Porter), contra 1 bilhão para Ludwig e 580 milhões para o Paciente 2. Depois de debater, eles decidiram tratá-lo de qualquer maneira.
O Paciente 3 não quis ser entrevistado, mas escreveu de forma anônima sobre sua experiência para o site da Universidade da Pensilvânia. Ele disse que, quando desenvolveu calafrios e febre, "eu tinha certeza de que havia uma guerra - eu era curado enquanto as células LLC estavam morrendo". Ele escreveu que era um cientista, e que quando jovem tinha sonhado em um dia fazer uma descoberta que beneficiasse a humanidade. Mas, ele concluiu, "nunca imaginei que eu faria parte do experimento". Quando Porter disse ao Paciente 3 que estava em remissão, ambos ficaram com lágrimas nos olhos.
Riscos para os pacientes
Embora promissoras, as novas técnicas desenvolvidas pelos pesquisadores da Universidade da Pensilvânia não deixam de ter riscos para os pacientes. As células T modificadas atacaram tecido saudável de pacientes em outros centros. Essa reação matou uma mulher de 39 anos com câncer de cólon avançado em um estudo no Instituto Nacional do Câncer, relataram pesquisadores da entidade no ano passado na revista "Molecular Therapy".
Ela desenvolveu problemas respiratórios graves 15 minutos depois de receber as células T, teve de ser colocada em um respirador artificial e morreu alguns dias depois. Aparentemente, uma proteína alvo nas células de câncer também estava presente em seus pulmões, e as células T se instalaram nela.
Pesquisadores do Centro do Câncer Sloan Kettering em Nova York também relataram uma morte no ano passado em um teste com célula T para leucemia (também publicado em "Molecular Therapy"). Uma autópsia descobriu que o paciente aparentemente morreu de septicemia, e não das células T, mas como ele morreu apenas quatro dias depois da infusão pesquisadores disseram que consideravam o tratamento um possível fator.
June disse que sua equipe espera usar as células T contra tumores sólidos, incluindo alguns que são muito difíceis de tratar, como mesotelioma e câncer pancreático e ovariano. Mas possíveis reações adversas são uma preocupação real, ele disse, notando que uma das proteínas alvo nas células de tumor também é encontrada nas membranas que revestem o peito e o abdômen. Os ataques de células T podem causar inflamação grave nessas membranas e imitar o lúpus, uma grave doença autoimune.
Mesmo que as células T não atinjam alvos inocentes, ainda há riscos. As proteínas que elas liberam podem causar uma "tempestade de citoquinas" - febre alta, inchaço, inflamação e pressão sanguínea perigosamente baixa - o que pode ser fatal. Ou, se o tratamento matar rapidamente bilhões de células cancerosas, os detritos podem danificar os rins e causar outros problemas.
Mesmo que o novo tratamento com células T se mostre eficaz, a indústria de medicamentos precisará produzi-los em massa. Mas June disse que a pesquisa está sendo feita apenas em universidades e não nessas companhias. Para que a indústria farmacêutica se interesse, ele disse, será necessário haver provas avassaladoras de que o tratamento é muito melhor que os já existentes.
"Aí acho que elas entrarão no jogo", ele disse. "Meu desafio hoje é fazer isto em um conjunto maior de pacientes com randomização, e mostrar que temos os mesmos efeitos."
Ludwig disse que quando entrou no teste não tinha opções. De fato, June disse que Ludwig estava "quase morto" de leucemia, e o esforço para tratá-lo foi uma "Ave Maria".
Ludwig disse: "Eu não me lembro de ninguém dizer que haveria uma remissão. Não acho que eles sonhavam tão alto".
O teste foi um estudo de Fase 1, o que significa que seu principal objetivo era descobrir se o tratamento era seguro e em que dose. É claro que médicos e pacientes sempre esperam que haja algum benefício, mas esse não era um objetivo oficial.
Quando os médicos abordaram Ludwig, ele pensou que se o teste pudesse lhe dar mais seis meses ou um ano de vida valeria a pena. Mas mesmo que o teste não o ajudasse ele achava que ainda seria válido se pudesse ajudar o estudo.
Quando as febres começaram, ele não tinha idéia de que poderia ser uma coisa positiva. Pensou que o tratamento não estivesse funcionando. Mas algumas semanas depois ele disse que sua oncologista, a doutora Alison Loren, lhe disse: "Não encontramos qualquer câncer em sua medula óssea".
Lembrando desse momento, Ludwig fez uma pausa e disse: "Fico arrepiado só de lhe dizer essas palavras". "Sinto-me maravilhoso", disse ele em uma entrevista recente. "Caminhei 18 buracos no campo de golfe esta manhã." Antes do estudo ele estava fraco, sofreu diversas crises de pneumonia e estava definhando. Hoje ele está cheio de energia e ganhou 20 quilos. Ele e sua mulher compraram um trailer no qual viajam com seu neto e sobrinho.
"Sinto-me normal, como dez anos antes de ser diagnosticado", disse Ludwig. "Esse teste clínico salvou minha vida."
Loren disse em uma entrevista: "Detesto dizer isso de maneira tão dramática, mas acho que salvou a vida dele". Ludwig contou que Loren disse a ele e sua mulher algo que considerou profundo. "Ela disse: Não sabemos quanto tempo vai durar. Aproveite cada dia. É o que eu tenho feito desde então."