(Por Elton Alisson. Agência FAPESP - 05/04/2013)
Agência FAPESP – O atendimento em saúde mental em todo o mundo está aquém do
desejável. E, mesmo em países com muitos recursos, como os Estados Unidos,
ainda há várias barreiras – como o estigma social dos transtornos mentais e a
falta de informação sobre a existência de tratamento – para possibilitar o
acesso, principalmente de crianças, aos serviços de apoio psicológico.
A
avaliação foi feita por Cristiane Seixas Duarte, professora do Departamento de
Psiquiatria Infanto-Juvenil da Columbia University, nos Estados Unidos, durante
conferência proferida na São Paulo School
of Advanced Science for Prevention of Mental Disorders (Y Mind) sobre o contexto e o
desenvolvimento da psicopatologia (estudo dos estados psíquicos relacionados ao
sofrimento mental) de crianças.
Promovida
pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em parceria com a
Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), a Universidade de Columbia, dos Estados Unidos, e o King’s College, da
Inglaterra, o evento, realizado no âmbito do Programa Escola São Paulo de
Ciência Avançada (ESPCA), da FAPESP, ocorreu entre 25 e 29 de março no campus
da Unifesp, em São Paulo.
Radicada
nos Estados Unidos há 13 anos, Duarte, que fez mestrado e doutorado com Bolsa da FAPESP, participa de um
estudo iniciado logo após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, com
o objetivo de avaliar os impactos psicológicos de um evento traumático dessa
magnitude em crianças.
A
pesquisadora destaca, em entrevista à Agência
FAPESP, a necessidade de centrar o foco em ações de prevenção e atendimento
à saúde mental de crianças e jovens. Mais de 75% dos transtornos mentais surgem
na infância e na adolescência e, quanto mais cedo diagnosticado o risco ou o
surgimento de um problema de saúde mental, maiores as chances de evitar sua
progressão.
Agência FAPESP – Os países em
desenvolvimento apresentam maior prevalência de transtornos mentais?
Cristiane Seixas Duarte –
O que verificamos – e isso ainda não está claro, porque não há estudo que tenha
usado uma mesma metodologia para fazer essa comparação e os dados sobre número
de pessoas com transtornos mentais em países como o Brasil são recentes – é que
os países em desenvolvimento tendem a ter uma taxa maior de distúrbios mentais
do que as nações desenvolvidas. Uma das hipóteses para explicar isso, que ainda
não foi testada, é que os países em desenvolvimento apresentam maior
prevalência de fatores de risco para o surgimento de transtornos mentais, como
a violência. O atendimento à saúde mental, no entanto, está aquém do que seria
desejável tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos. Nos
Estados Unidos, realizamos estudos em colaboração com pesquisadores da Noruega
e da Finlândia e vimos que, mesmo em países com muitos recursos, ainda existem
muitas barreiras para o atendimento à saúde mental, principalmente de crianças.
Agência FAPESP – Por que isso ocorre?
Duarte – Pode ser
resultado de uma combinação de fatores, como o estigma social do problema de
saúde mental e o desconhecimento de que existem tratamentos muito eficientes
para a grande maioria dos distúrbios mentais. A falta de serviço de atendimento
à saúde mental também é um fator importante que contribui para esse cenário.
Agência FAPESP – Por que as ações de
prevenção e atendimento à saúde mental devem ser focadas em crianças e
adolescentes?
Duarte – Mais de 75% dos
transtornos mentais começam na infância ou até os 18 anos de idade – quando o
cérebro, a personalidade e as relações estão em desenvolvimento – e progridem
ao longo da vida. Isso não quer dizer que não se possa iniciar uma depressão
aos 40 anos, por exemplo, o que é bastante comum, principalmente em mulheres.
Mas a maioria dos casos de distúrbio mental se inicia muito antes disso. Se
conseguirmos ter alguma atuação de atendimento à saúde mental realmente efetiva
na infância, será possível prevenir a grande maioria dos transtornos mentais. A
tendência do senso comum é achar que não é preciso se preocupar com a saúde
mental das crianças, porque estão em uma fase em que só brincam. Sabemos, no
entanto, que o tratamento de um distúrbio mental pode ser bastante efetivo se
diagnosticado no início, antes de o problema se tornar crônico.
Agência FAPESP – Que formas de tratamento
de crianças com distúrbios mentais existem atualmente?
Duarte – Há estratégias
farmacológicas eficientes, particularmente para o tratamento do Transtorno do
Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Mas também há estratégias de
psicoterapia relativamente breves que podem ajudar muito crianças com outros
tipos de transtornos mentais, principalmente se combinadas com intervenções com
os pais e se iniciadas cedo. Embora ainda exista muito espaço para melhorar
essas intervenções psicossociais e psicoterápicas e torná-las mais eficientes e
possíveis de serem incluídas nos sistemas de saúde, elas têm se revelado muito
promissoras. A grande preocupação é como facilitar o acesso a crianças que
realmente precisam dessas estratégias. Muitas delas não estão na escola e permanecem
excluídas da maioria dos sistemas de atendimento à saúde. Precisamos
desenvolver estratégias para atender um número cada vez maior de crianças.
Agência FAPESP – Uma pesquisa divulgada
recentemente pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] apontou que
o uso de metifenidato [medicamento utilizado no tratamento de TDAH] em crianças
e adolescentes entre 6 e 16 anos no Brasil aumentou 75% no período de 2009 a
2011. Isso também ocorreu nos Estados Unidos?
Duarte – Nos Estados
Unidos, o consumo de metifenidato para o tratamento de TDAH também tem
aumentado, mas muitas crianças que precisam do medicamento não o recebem e as
que não precisam o usam. A mensagem de que está se consumindo mais remédios
para tratamento de distúrbios mentais não significa, exatamente, uso abusivo.
Pode ser que as crianças que realmente poderiam se beneficiar do uso desse
medicamento não estão tendo acesso a ele.
Agência FAPESP – Há diferenças de tipos
de distúrbios mentais apresentados por crianças e adolescentes de países em
desenvolvimento em comparação com as de países desenvolvidos?
Duarte – De maneira geral,
os dados que temos até agora mostram que a estrutura dos transtornos mentais
apresentados por crianças e adolescentes tanto de países desenvolvidos como em
desenvolvimento parece ser muito semelhante. Mas há também diferenças
importantes em relação a como os sintomas da depressão em crianças, por
exemplo, são avaliados. Há países que tendem a “psicologizar” a depressão e
enfatizar mais os sintomas cognitivos e emocionais. Outros privilegiam mais os
sintomas físicos, como fadiga e insônia, do que os mentais. A forma como os
sintomas de um distúrbio mental se moldam podem variar de cultura, país,
contexto e classe social. Não sabemos muito bem a quantidade de variações.
Seria necessário um estudo usando a mesma metodologia, em diferentes regiões, e
isso ainda não foi feito com crianças.
Agência FAPESP – A senhora participa de
um estudo que acompanha a trajetória de vida de crianças do condado do Bronx,
em Nova York, e de Porto Rico. Há diferenças significativas entre eles?
Duarte – Esse estudo já
tem muitos resultados, porque seguimos essas crianças quando elas tinham entre
5 e 13 anos e agora estamos acompanhando o início de sua fase adulta.
Observamos que, na infância, tanto no Bronx como em Porto Rico, meninos e
meninas têm problemas de saúde mental mais ou menos parecidos. Conforme
evoluem, porém, as crianças do Bronx ficam piores. Uma das hipóteses para
explicar isso é que, em Porto Rico, apesar da pobreza e falta de serviços
básicos, não existe um fator importante para o desenvolvimento de transtornos
mentais: a discriminação social, que faz com que as pessoas sintam que não
pertencem a um determinado grupo. Nossa interpretação é que algum fator
associado a isso pode ser muito importante para o desenvolvimento de
transtornos mentais, com outras questões, como o suporte familiar. Em Porto
Rico as famílias são mais intactas; já no Bronx, em mais de 40% das famílias,
não há a presença do pai. Todos esses fatores contribuem para o desenvolvimento
de transtornos mentais. Fizemos um estudo-piloto com jovens entre 16 e 25 anos
dessas duas regiões e constatamos que 40% têm pelo menos um filho que também
faz parte de uma população de risco de desenvolvimento de transtorno mental.
Precisamos entender como os transtornos mentais evoluem de geração para geração
para podermos prevenir os riscos desde o início e tentarmos mudar as
trajetórias de saúde mental dessas pessoas.
Agência FAPESP – A senhora também
participa de uma pesquisa, iniciada logo após os ataques terroristas de 11 de
setembro de 2001, para avaliar os impactos psicológicos de um evento traumático
dessa magnitude em crianças que vivem em Nova York. Quais os possíveis
desdobramentos desse trabalho?
Duarte – Seis meses depois
do 11 de setembro, avaliamos 8 mil crianças que estavam não apenas próximas do Ground Zero – o local onde ficava o World Trade
Center –, mas em diferentes lugares da cidade. Observamos que elas apresentavam
diferentes tipos de transtorno, não apenas o transtorno de estresse
pós-traumático. Agora, continuamos a seguir uma amostra dessas crianças para
analisar o que ocorre na fase adulta, em termos de saúde mental. A ideia é
verificar se elas se tornarão pessoas mais temerosas em relação à vida ou, pelo
contrário, vão ser mais resilientes e tentarão se posicionar no mundo da
maneira mais positiva possível, que é outro tipo de reação apresentado por quem
viveu um evento traumático. Como, infelizmente, episódios dessa magnitude podem
acontecer de novo, se soubermos um pouco mais quais são as possíveis
trajetórias da saúde mental das pessoas atingidas, direta ou indiretamente,
poderemos ajudá-las o mais cedo possível a evitar desenvolver problemas graves
de saúde mental. Por outro lado, seguir essas crianças ao longo do tempo abre
uma perspectiva muito importante para realmente aprender sobre a evolução dos
transtornos mentais, que são doenças crônicas. Quando analisadas em um só ponto
no tempo, o aprendizado sobre elas se torna muito limitado. Se pudermos seguir
e verificar como as condições de saúde mental se desenrolam durante as
trajetórias de vida e quais são os problemas mais específicos que surgem,
poderemos melhorar as estratégias de intervenção clínica.
Agência FAPESP – Quais os principais desafios
para a realização de estudos de longa duração como esses, com crianças do
Bronx, de Porto Rico e das afetadas pelo 11 de Setembro?
Duarte – É preciso seguir
um grande número de participantes por muito tempo, sem perder o contato com
eles e ter certeza de que estão sempre engajadas no estudo, e tudo isso é muito
caro. Por isso, não existem muitos estudos desse tipo no mundo, mas o Brasil
precisa ter um. Há estudos desse gênero na área da saúde, em geral, mas não em
saúde mental. Existem vários estudos do gênero na área de saúde mental nos
Estados Unidos, mas o que realizamos com porto-riquenhos, por exemplo, até
agora é o único com foco em latinos.
Agência FAPESP – Como a senhora avalia os
impactos do Project Liberty, implementado pelo governo dos Estados Unidos logo
após o 11 de Setembro, com o intuito de oferecer atendimento psicológico
gratuito às pessoas afetadas pelos ataques terroristas ao World Trade Center?
Duarte – O fato de o
programa ter possibilitado o acesso gratuito ao atendimento em saúde mental –
que nos Estados Unidos é pago e caro – teve um impacto positivo. Mesmo com essa
iniciativa, o uso de serviços de saúde mental por crianças que foram atingidas
pelo 11 de Setembro e que desenvolveram transtornos mentais ficou abaixo do
necessário, conforme demonstrou uma pesquisa de doutorado, realizada por uma
estudante brasileira no nosso grupo na Columbia University, que em breve será
publicada. Isso mostra que, além de excluir a barreira do pagamento, talvez
precisemos eliminar outros empecilhos em nossas estratégias para facilitar o
acesso ao atendimento à saúde mental, como o estigma dos transtornos mentais e
a desinformação em relação à existência de tratamento.
Agência FAPESP – Que estratégias o Brasil
poderia adotar para melhorar o atendimento à saúde mental de crianças e
adolescentes?
Duarte – Conduzimos um
estudo em parceria com pesquisadores brasileiros em Itaboraí, cidade com 200
mil habitantes a uma hora do Rio de Janeiro. O objetivo foi prevenir
comportamentos sexuais de risco, como o sexo desprotegido, mais prevalentes em
adolescentes com problemas de saúde mental. Para isso, fizemos intervenções em
três diferentes tipos de serviços comuns ao resto do país: os Centros de
Atenção Psicossocial Infanto-Juvenis (CAPSis), os ambulatórios de saúde mental
– que representam uma estratégia mais tradicional de atendimento à saúde mental
– e o Programa Saúde da Família, uma estratégia de atendimento à saúde primária
que cobre aproximadamente 50% da população brasileira. Como o próprio British Medical Journal destacou em artigo publicado
recentemente, esse programa representa uma estratégia brasileira de atendimento
à saúde na qual o mundo deveria prestar atenção. Em minha forma de pensar a
saúde mental, com grande ênfase na interação com a saúde pública, esse programa
também pode ser bastante valioso para identificar crianças com problemas de
saúde mental e realizar intervenções básicas para casos mais leves, porque os
agentes de saúde são responsáveis por atender um determinado número de famílias
de uma área geográfica. Por morar na mesma comunidade que essas famílias, os
agentes de saúde estabelecem com elas relações de longo prazo e podem se
deslocar facilmente para fazer qualquer tipo de atendimento e acompanhar o
quadro de saúde das pessoas dentro de suas próprias casas. Isso, em termos de
acesso às pessoas, não tem preço.
Agência FAPESP – Nesse sentido, qual
seria o papel dos profissionais de saúde mental para auxiliar esses agentes de
saúde a identificar crianças com problemas de saúde mental?
Duarte – Nossa
responsabilidade, como profissionais de saúde mental, é orientar esses agentes
de saúde que estão na linha de frente para fazer a identificação, triagem e
mesmo o atendimento dos casos mais simples. Sabemos que isso é possível, desde
que esses profissionais tenham o mínimo de treinamento adequado. Não temos a
ilusão de que são os psicólogos, psiquiatras e, muito menos, os psiquiatras
infantis, que irão atender essa demanda. Quem terá de fazer a maior parte desse
trabalho são os profissionais que estão na linha de frente do atendimento à
saúde, como enfermeiras, médicos e até agentes do Programa de Saúde da Família.
Esses profissionais podem nos auxiliar no sentido de não diagnosticar um
problema de saúde mental, mas identificar uma situação em que claramente há um
contexto de risco de desenvolvimento de transtorno mental em que precisamos
agir. Há trabalhos que mostram, por exemplo, que a visita continuada de uma
enfermeira a uma mãe nos primeiros meses após o término da gravidez pode
contribuir para diminuir o risco de desenvolvimento de comportamentos
agressivos e de depressão pós-parto.
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