Autora de best-sellers sobre bullying e psicopatia alerta que tristeza e mania são transformadas em doenças
O Globo, 09-05-2011
Roberta Jansen
RIO - A psiquiatra carioca Ana Beatriz Barbosa tornou-se uma das autoras mais lidas no país ao penetrar no complexo mundo de pessoas frias e perversas e transformá-lo no livro "Mentes perigosas - o psicopata mora ao lado" (Ed. Fontanar), há dois anos na lista dos mais vendidos do país. No ano passado, um outro livro da autora rapidamente tornou-se assunto de debate: "Bullying - mentes perigosas na escola", também da Fontanar. Com a capacidade de transpor para a linguagem leiga assuntos antes restritos à psiquiatria, Ana Beatriz relança agora, pela mesma editora, um antigo trabalho, "Mentes e manias. TOC: Transtorno Obsessivo-Compulsivo". Consultora de novelas da TV Globo em temas como esquizofrenia e psicopatia, a especialista acredita que a popularização dos conceitos é diretamente responsável pelo aumento do diagnóstico, pela procura por tratamento e também pela redução do preconceito. Nesta entrevista, ela fala sobre os diferentes transtornos comportamentais e garante que a busca por um cérebro perfeito é inglória. "A imperfeição é a nossa única certeza."
O GLOBO: Os diagnósticos de transtornos de alteração de comportamento são cada vez mais frequentes. A cada dia, mais e mais pessoas conhecidas vêm a público revelar algum problema. Quase todo mundo toma ou já tomou algum tipo de antidepressivo. Estamos diagnosticando melhor ou criando doenças para vender mais remédio?
ANA BEATRIZ BARBOSA: Depende. O Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) é o transtorno mais grave de ansiedade que uma pessoa pode ter de forma permanente. Nos anos 70 e 80, achava-se que apenas 0,2% da população tinha TOC. Mas o que se viu, inicialmente nos EUA, depois do filme "Melhor impossível", em que Jack Nicholson ganhou um Oscar ao interpretar um sujeito com o transtorno, foi a difusão da ideia. As pessoas que sofrem desse transtorno têm consciência de que as coisas que fazem (os pensamentos negativos, os rituais de neutralização) são tão fora de lógica que tendem a omitir de todos. E têm a sensação de que são os únicos a terem aquilo. Com o filme, se viu que não era assim. No Brasil, foi quando Luciana Vendramini, em 2003, e Roberto Carlos, em 2004, vieram a público falar do problema. Então, sim, no caso do TOC, hoje há um maior número de diagnósticos, mas não está se criando nada. Isso ocorre porque há mais informação disponível sobre o transtorno.
" As pessoas que sofrem de TOC têm consciência de que as coisas que fazem são tão fora de lógica que tendem a omitir de todos "
O GLOBO: E outros transtornos?
ANA BEATRIZ: Em outras doenças, sim, acho que há um excesso de diagnóstico. É o caso, por exemplo, do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). É incrível a quantidade de pessoas que chega ao meu consultório dizendo que tem TDAH quando, na verdade, não tem. Falta conhecimento e acaba havendo confusão com outros problemas, como o autismo, por exemplo. No caso da depressão também há um excesso de diagnóstico. A "deprê" está virando depressão.
O GLOBO: Hoje, todo mundo que se separa toma antidepressivo. Dá para encarar o fim de um casamento sem remédio?
ANA BEATRIZ: Pessoas que terminam um casamento não estão necessariamente sofrendo de depressão. Depois de dez, 20 anos, vivendo com alguém, a separação traz uma mudança significativa de vida. E isso leva um tempo para acontecer, é natural que a pessoa fique triste. Me surpreenderia se estivesse feliz. O sofrimento é normal e necessário ao nosso amadurecimento e o cérebro sabe lidar com isso. Agora, se a pessoa está há três meses sem sair de casa, por exemplo, se há histórico de suicídio na família, aí temos mesmo que interferir.
O GLOBO: E os grandes traumas, como o massacre da escola em Realengo ou o 11 de Setembro?
ANA BEATRIZ: O nosso cérebro não está preparado para ver certas coisas. Ele precisa de um período de luto, um mês pelo menos, em que não se deve mexer com ele. Deve-se deixar a pessoa reagir da forma que for, se calar, falar, não se pode forçar. Qualquer reação é normal: choro, frieza. A partir do segundo mês, quando acaba a fase de luto, o tempo vai nos mostrar quem vai adoecer em função daquilo e quem não vai. Tem muito a ver com a personalidade de cada pessoa.
O GLOBO: Esse tempo de um mês é o tempo da tristeza normal?
ANA BEATRIZ: O cérebro tem seus mecanismos de defesa para esses traumas muito violentos. Ele libera uma série de substâncias para anestesiar mesmo. E isso tem essa duração média. Se você interfere antes, aumenta a probabilidade de as pessoas adoecerem, se deprimirem, porque você está mexendo numa situação que o cérebro quer esquecer. Para o cérebro não tem ficção e realidade. Quando se fala, ele revive tudo novamente, revê a imagem milhões de vezes, levando a uma exaustão emocional. É preciso dar um tempo.
O GLOBO: Então é falsa a ideia de que falar sobre um problema é sempre bom? Esquecer é bom?
ANA BEATRIZ: Sim, principalmente para grandes tragédias. Não estou dizendo que é para esconder problemas embaixo do tapete, mas numa grande tragédia é preciso deixar o cérebro se anestesiar por um tempo. A grande maioria das pessoas não vai adoecer. Agora, ao fim de um mês, dois meses, se persistirem reações diferentes, como insônia, pesadelos, medos que não existiam antes, aí sim, é o caso de investigar se a pessoa está com alguma doença.
O GLOBO: Existe um cérebro perfeito? É possível almejar isso?
ANA BEATRIZ: Jamais. A anormalidade é a única certeza, a imperfeição humana é uma certeza. O cérebro perfeito seria bom em todas as áreas, funcionando com energia máxima para matemática, comunicação, desenho, arte, música, isso não existe. Cada cérebro tem potencialidades maiores, que se transformam em talentos específicos, e deficiências em função desses supertalentos. Há autistas, por exemplo, que desenham muito bem, mas quando começam a se socializar, que é o nosso objetivo sempre, esse dom é quase apagado. A perfeição não existe.
O GLOBO: Todo gênio tem um certo grau de obsessão? Não é preciso ser um pouco obsessivo para ser muito bom em algo? Ou a relação entre genialidade e loucura é apenas um clichê romântico?
ANA BEATRIZ: No mínimo, elas têm traços obsessivos para conseguir fazer algo com tamanho empenho. Claro que, no caso de pessoas com um talento extraordinário para alguma coisa, toda a energia que está focada num ponto está deixando de ir para outro. Mas se não houver isolamento social, em prejuízo para a vida afetiva, causando sofrimento, não tem problema. O que caracteriza o adoecimento são os pensamentos negativos e intrusivos e os rituais que trazem prejuízos reais, no trabalho, na vida familiar.
" A anormalidade é a única certeza, a imperfeição humana é uma certeza "
O GLOBO: Então o problema é mais na frequência e no fato de interferir ou não em outras áreas?
ANA BEATRIZ: A diferença da normalidade para a anormalidade, para o transtorno mental, é quantitativa, não qualitativa. A base funcional do cérebro é comum a todo mundo. O adoecimento está no exagero ou na ausência. Todos temos o que chamamos leigamente de manias, mas se elas não atrapalham nossa rotina, nossa vida, ok.
O GLOBO: Qual a diferença entre mania e superstição?
ANA BEATRIZ: As pequenas manias do dia a dia, os hábitos, todo mundo tem, a questão é o tempo que isso toma e o prejuízo que traz. Agora, mania, na psiquiatria, é a compulsão do TOC para controlar os efeitos dos pensamentos negativos, rituais de associação ilógica. Superstição não tem nada a ver com isso. É uma crença culturalmente aceita. Por exemplo, a pessoa passa debaixo de uma escada sem querer, comenta sobre isso, mas logo depois esquece. Se ela tiver TOC, isso vai durar uma semana, um mês.
O GLOBO: Religiões são cheias de rituais não necessariamente lógicos para que algo de bom aconteça ou algo de ruim não ocorra. É como um TOC culturalmente aceito?
ANA BEATRIZ: As religiões são cheias de rituais e a grande maioria das pessoas não os leva ao pé da letra. Mas o fanatismo dentro da religião já é um indício de grande adoecimento. É vinculado ao sofrimento. Seguir todos aqueles rituais por pavor, desespero, necessidade de controle.
O GLOBO: Todos os dias, recebemos uma quantidade enorme de informações, provenientes de livros, TV, cinema, jornais, computador. Qual o efeito disso no cérebro?
Diz-se que a capacidade do cérebro é infinita. É verdade?
ANA BEATRIZ: Já se começa a estudar a síndrome do excesso de informação. O cérebro tem uma capacidade expansiva maravilhosa, mas se isso é feito de forma intensa e massacrante, e em alta velocidade, leva à exaustão mental.
O GLOBO: Por que é mais difícil aceitar os problemas físicos do que os mentais? Sabe-se que 4% da população sofrem de TOC, uma prevalência tão alta quanto a da diabetes.
ANA BEATRIZ: As pessoas não têm essa noção de que a diferença entre a normalidade e a anormalidade é quantitativa, que quando se entende isso, é possível entender qualquer um. As pessoas têm preconceito porque têm tanta aversão a enlouquecer, a perder o controle de si mesmas, de suas ações, que preferem ter um câncer a ter um filho com problema mental. Elas não entendem que o cérebro é um órgão como outro qualquer, que precisa ser cuidado.
O GLOBO: Recentemente a atriz Catherine Zeta-Jones veio a público dizer que sofre de Transtorno Bipolar. Essa também é uma doença pouco conhecida?
ANA BEATRIZ: Tenho minhas dúvidas se ela é bipolar. Os bipolares alternam períodos relativamente longos de depressão profunda e grande euforia. Eu acho que ela tem um outro problema, que costuma ser confundido com a bipolaridade, que é o transtorno de personalidade borderline (ou limítrofe). São pessoas que apresentam grande instabilidade emocional, que tendem a ser muito dependentes de quem amam, não toleram rejeição. Afeta principalmente mulheres, que podem ser do tipo de quebrar tudo em casa, serem muito ciumentas. Histórias como as de Elizabeth Taylor, por exemplo, são clássicas. Elas passam rapidamente de um estado ao outro, diferente do bipolar. É um transtorno pouco conhecido, no Brasil esse diagnóstico praticamente não é feito. Será tema do meu novo livro.
O GLOBO: Há mais loucos hoje no mundo? O bullying é mais recorrente? Ou é a mídia que divulga mais as histórias?
ANA BEATRIZ: O que a gente vê é que, com a globalização, os comportamentos estão mais orquestrados e padronizados. O bullying sempre existiu, claro, mas não era tão massificado. Hoje, as crianças do mundo inteiro têm um mesmo padrão de comportamento a ser seguido. E as que fogem a ele são mais violentamente atacadas. E há um submundo na internet que dá muito medo. Comunidades do tipo "toda mulher gosta de ser estuprada" e "morte aos gays", que tem 40 mil seguidores. Veja, isso dá um respaldo incrível para um cara que está sozinho. A globalização deu força a pessoas que antes tinham preconceitos, maldades e perversões sem eco algum. Agora, elas têm eco, se organizam. O rapaz de Realengo era esquizofrênico. Há 20 anos, ele viveria isolado, e o mais provável é que terminasse se matando. Mas aí ele imita uma coisa de fora. É uma loucura fomentada por gente cruel.
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