Um
leão por dia: Deficientes
físicos são cidadãos como outros quaisquer, com direitos e deveres garantidos
por lei.
(Revista
Planeta, Nº 481, outubro/2012. Por Milton Correia Júnior)
Viver
é uma luta diária. Para os deficientes físicos, uma batalha mais árdua ainda.
Embora tenham os seus direitos assegurados por lei, os deficientes precisam
lutar para conseguir realizar coisas simples como estudar, trabalhar, cuidar da
saúde e ter momentos de lazer.
A
advogada paulista Thays Martinez perdeu a visão em decorrência de uma caxumba
contraída aos 4 anos de idade. Numa tarde do ano 2000, quando os primeiros
pisos táteis começavam a ser instalados na estação Marechal Deodoro do metrô de
São Paulo, ela foi impedida de entrar com o seu cão-guia, Boris, treinado nos
Estados Unidos, um dos primeiros trazidos para o Brasil. Os funcionários do
metrô alegavam que ela podia, mas o cachorro não.
Foi
o início de uma batalha judicial de seis anos, que no fim deu à advogada o
direito de acesso irrestrito ao metrô e mudou também as regras da companhia,
que passou a aceitar cães-guia na rede. A odisseia está contada no livro Minha
Vida com Boris (Editora Globo). Mas ainda existem táxis e restaurantes que
impedem a entrada de Diesel, o seu segundo cão-guia, embora muitos cedam depois
de uma conversa. Quando o livro foi lançado, Thays exigiu que houvesse uma
versão em audiolivro, para que outros deficientes visuais pudessem acompanhar a
história.
O
cadeirante fluminense Guilherme Meyer Ramalho também sentiu – e ainda sente –
na pele as dificuldades que os deficientes físicos enfrentam. A contingência o
motivou a fundar um grupo de portadores de necessidades especiais, em 1981, a
Associação Niteroiense dos Defi cientes Físicos (Andef), com o propósito de
desenvolver ações de garantia e promoção de direitos. A associação gera seus
próprios recursos para a manutenção das atividades que beneficiam 600
portadores de deficiência ao mês. Hoje ela virou a maior sede de uma associação
do gênero na América Latina e uma das maiores do mundo. Com investimentos da
ordem de R$ 5 milhões, a Andef realizou recentemente seu maior projeto, a
construção do Centro Social e Esportivo, em Niterói.
Guilherme
conta que quando o grupo se formou, há 30 anos, a situação dos deficientes
físicos no país era muito precária. De lá para cá, as coisas mudaram, mas ainda
resta muito a ser feito. “Ensinar as pessoas a nos respeitar é uma ação
prioritária e as conquistas vão acontecendo. O deficiente tem o direito de ir e
vir e por isso deve ter plenas condições de se locomover. Reformas de
edifícios, rampas de acesso, pisos táteis e outras adaptações não favorecem só
os deficientes, mas a população em geral, com grande número de gestantes,
obesos e idosos. São medidas que não oneram tanto os cofres públicos e agora,
felizmente, o governo está atento a isso”, assegura Guilherme.
Em
sua opinião, trata-se de um trabalho gradativo e constante, a ser feito
diariamente, com o objetivo de aumentar a qualidade de vida e a dignidade do
portador de deficiência. Guilherme está entusiasmado com o novo centro
esportivo da Andef, que funcionará como uma das sedes para os Jogos
Paralímpicos de 2016. A entidade está se preparando para dar condições de
alojamento e práticas esportivas aos atletas deficientes do mundo todo e
pretende conseguir parcerias e patrocínios para cumprir a tarefa que lhe foi
designada.
O
paranaense Flávio Peralta, por sua vez, procurou superar todos os limites
quando perdeu os dois braços em 1997, num acidente de trabalho em Londrina.
Tinha 29 anos. Ele trabalhava com equipamentos de alta voltagem e recebeu um
choque elétrico de 13.800 volts. A partir daí ele passou a ter apenas duas
opções na vida: se entregar ou lutar. Resolveu seguir o segundo caminho.
Flávio
se engajou em movimentos na luta pelos direitos dos deficientes físicos, montou
o site www.amputadosvencedores.com.br,
escreveu o livro Amputados Vencedores, no qual conta a sua história, e começou
a fazer palestras a respeito de segurança no trabalho e inclusão de deficientes
nas empresas. Sua vida seguiu o mesmo rumo de reconstrução, pois se casou com
Jane, que perdeu uma das pernas num acidente de moto, e tiveram um filho,
Vinícius. Jane também faz palestras e auxilia o marido a criar livros como Os
Peraltas e Cartilha sobre Segurança do Trabalho. “Queremos mostrar, com o nosso
exemplo, que sempre existem saídas e oportunidades”, insiste.
Flávio
viveu o antes e o depois. Quando se tornou um deficiente físico, muitas coisas
mudaram e ele teve de lutar para se readequar e voltar a conviver em sociedade.
Embora admita a existência de preconceito, quase não o sente. As crianças, por
exemplo, em geral são receptivas e curiosas, querendo saber sobre a sua
condição. Também procura sensibilizar empresários – como os do ramo turístico e
hoteleiro –, pois os deficientes também se constituem num importante nicho de
consumidores de produtos e serviços.
Plano ambicioso
No
Brasil, até pouco tempo, não se pensava na inclusão do deficiente físico na
sociedade e no mercado de trabalho. Mas as coisas começaram a mudar quando o
governo instituiu, em 24 de julho de 1991, a Lei de Cotas, de número 8.213, que
obriga as empresas a contratar um determinado número de portadores de
necessidades especiais, de acordo com a quantidade total de funcionários.
Em
2011, o governo federal resolveu unificar a atuação de diversos órgãos públicos
e lançou o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Viver sem
Limite, com o objetivo de promover a autonomia e a inclusão do deficiente
físico. O plano tem quatro eixos de atuação: acesso à educação, atenção à
saúde, inclusão social e acessibilidade. Envolve ações de 15 órgãos federais,
Estados e municípios, sob a coordenação da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República e previsão orçamentária de R$ 7,6 bilhões.
Até
2014 a meta é inserir no ensino público 378 mil pessoas, adaptar 42 mil escolas
para receber esses alunos, adquirir 2,6 mil ônibus adaptados para o transporte
escolar nos municípios, atualizar e implantar salas de aula multifuncionais e
contratar tradutores e intérpretes de libras (linguagem de sinais) para
escolas.
O
Ministério da Educação vai criar o curso superior de Letras em Libras (Língua
Brasileira de Sinais, usada por deficientes auditivos) nas universidades. Está
prevista também a criação de centros de treinamento para cães-guias em todos os
Estados até 2014. O Brasil deve se preparar, pois deverá dar pleno acesso aos
deficientes daqui e do exterior aos jogos da Copa do Mundo de 2014 e da
Olimpíada de 2016.
Segundo
dados do governo, em nove meses de atuação, o Viver sem Limite atingiu diversas
metas, entre elas a oferta de 20 mil vagas em cursos de capacitação e o repasse
de recursos para projetos piloto de inclusão social, como os Centros-Dia e as
Residências Inclusivas, coordenados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome.
A
meta para 2012 na área de educação também já foi atingida, com a oferta de 20
mil vagas no Programa Nacional de Acesso ao Emprego e Ensino Técnico
(Pronatec). Outra medida importante foi a desoneração do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI) para veículos para pessoas com deficiência e, a partir
de janeiro de 2013, do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
(ICMS).
Sustentabilidade para todos
A
combativa deputada federal pelo PSDB de São Paulo Mara Gabrilli, 45 anos,
eleita com 160 mil votos, ficou tetraplégica em 1995, devido a um acidente de
automóvel. Para ela, o balanço divulgado pelo governo não contém informações
fundamentais sobre o número de escolas acessíveis e de centros de reabilitação
implantados, nem se houve aumento na distribuição de órteses e próteses. Também
observa que as melhorias anunciadas, como a oferta de vagas no Pronatec e a
isenção do IPI para veículos adaptados, foram resultantes do seu trabalho,
frutos de emendas nos projetos do governo, que sequer mencionavam as pessoas
com deficiência em sua versão original. A isenção do IPI, por exemplo, é uma
luta antiga obtida depois da reunião da deputada com o Conselho Nacional de
Política Fazendária (Confaz).
“A
inclusão do deficiente é uma das vertentes da sustentabilidade. Para termos
vida e políticas sustentáveis, é preciso contemplar a diversidade. As pessoas
têm de estar integradas ao mercado de trabalho e exercer a plena cidadania. Não
se pode excluir parte da população. Falar em sustentabilidade é falar em
qualidade humana”, assegura.
A
advogada Thays Martinez também tem dúvidas. “Como vão criar centros de formação
de instrutores de cães-guia se não há profissionais habilitados para servir
como professores? Deveriam aproveitar os que já existem e que possuem
qualificação internacional”, critica.
Thayz
também contesta o fato de o projeto determinar que 1,2 milhão de casas do plano
Minha Casa Minha Vida sejam adaptadas para cadeirantes, além de prover kits de
acessibilidade conforme a deficiência do morador. “Todas as residências
deveriam seguir um desenho que atenda essas necessidades especiais, pois um
morador pode vir a apresentá-las em certas ocasiões da sua vida, ou no
envelhecimento. Fica mais barato e prático construir um imóvel assim do que
reformá-lo depois”, observa. O mesmo vale para frotas de ônibus e outros
transportes públicos. A seu ver, todos os veículos têm de estar adaptados, pois
o deficiente precisa cumprir horários no trabalho e compromissos e não pode
ficar esperando que chegue o veículo que dê condições de embarque.
Nem
tudo o que aparece como boa intenção acontece na prática. Embora o governo
determine que certo número de deficientes tenha acesso aos concursos públicos,
a advogada já deixou de prestá-los por não haver no local da prova computadores
com softwares especiais para deficientes visuais, em flagrante contrassenso. “A
sociedade e os governantes têm de entender que não estão fazendo favores e
concessões aos deficientes físicos”, afirma Thayz. “Trata-se de uma questão de
direitos que devem ser respeitados.”
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