Paranoia alimentar
Por
que um ato trivial como o de decidir o que comer, virou algo tão incrivelmente
complexo ao longo dos últimos anos?
(REVISTA
PLANETA, Por Marina Kuzuyabu. Edição 499 – Julho 2014)
Comer
para matar a fome, comer por gula, comer para celebrar, comer por comer.
Não há nada de estranho nisso, há séculos. Mas, para muitas pessoas, essas
atitudes estão se tornando cada vez mais raras. Hoje em dia, come-se
para prevenir a osteoporose, melhorar a elasticidade da pele, reduzir os
níveis de colesterol, desintoxicar o organismo ou obter benefícios para a
saúde. A comida deixou de ser comida e o ato de comer deixou de ser
impensado.
Cada
vez mais comum, esse é o comportamento típico da era do nutricionismo, o
atual estágio em que vivemos, como definiu o jornalista americano e ativista
culinário Michael Pollan, autor de diversos livros sobre a alimentação
moderna, entre eles. O Dilema do Onívoro (que ficou dois anos na lista dos
mais vendidos do jornal e New York Times, em 2007), Em Defesa da Comida e As
Regras da Comida – Um Manual de Sabedoria Alimentar (Intrínseca).
Na
introdução desse último trabalho, Pollan chama a atenção para o fato de que
todos os adultos minimamente informados sabem, ou pelo menos têm uma vaga
ideia, do que são antioxidante, ômega 3, probiótico e gordura saturada, para
citar alguns termos. Para Pollan, professor de jornalismo na Universidade da
Califórnia em Berkeley, esse é um despropósito característico da “desordem
alimentar” em que vivemos – correndo ansiosamente atrás de dietas malucas, cada
vez mais obesos, anoréxicos ou bulímicos.
Foi
na última década que cresceu a preocupação com a saúde e com a
alimentação saudável e sustentável, observa o psiquiatra Alexandre Pinto
de Azevedo, do Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). A moda da saúde alimentar
se tornou tão exagerada que hoje é considerada uma das principais
causadoras dos transtornos alimentares. Soma-se a isso a valorização
cultural da estética. “Nunca se falou tanto em corpo e magreza como nos
últimos anos e em sua associação (inadequada) com sucesso e bem-estar”,
relata o médico.
Alguns
especialistas associam o fenômeno ao excesso de informações veiculadas na
imprensa e nas redes sociais sobre nutrição. A nutricionista e doutora em
saúde mental Rosane Pilot Pessa Ribeiro, da Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP), é uma das que
partilham essa opinião. Com atuação na área de transtornos alimentares,
Rosane diz que a ênfase dada aos efeitos dos alimentos em nosso organismo
tem feito com que muitas pessoas hipervalorizem “regras e modismos
tentando evitar doenças que não necessariamente vão deixar de existir,
mesmo com uma alimentação mais saudável”.
Ao
contrário do que se poderia supor, quanto mais lemos a respeito
dos alimentos, mais indecisos fi camos. Afi nal, ovo faz bem ou mal para a
saúde? E o que dizer da carne vermelha e do café? Nesse meio, não é raro
encontrar opiniões totalmente controversas. Atualmente, as críticas estão
voltadas à lactose e, mais intensamente, ao glúten. “Assim como o ovo já
foi crucifi - cado, agora é a vez do glúten”, aponta a nutricionista
Priscila Farage, pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB).
Não
é difícil encontrar nos supermercados e restaurantes dos grandes centros
urbanos uma variedade considerável de preparações dessa
proteína, disponível em cereais como trigo, aveia e cevada. Quem sofre
de intolerância (doença celíaca), alergia ou sensibilidade ao glúten não
pode ingerir alimentos e bebidas feitos à base de cereais – como pães,
massas, biscoitos, cerveja e uísque –, pois a substância impede ou difi culta a
absorção de nutrientes pelo organismo, além de causar uma série de distúrbios.
Segundo Priscila, o diagnóstico dessas doenças aumentou com a ampliação de sua
divulgação no meio científi co. Isso explica, em parte, o aumento da oferta de
produtos sem a proteína.
Mas
uma parte deve ser creditada à promessa de que uma dieta sem glúten
seria melhor para o aproveitamento de nutrientes, mesmo entre os não
alérgicos, e que ela poderia favorecer a perda de peso. A
pesquisadora esclarece que a restrição é desnecessária entre indivíduos
saudáveis, mas reconhece que existe um efeito colateral sobre o peso.
Afinal, quem segue a dieta diminui o consumo de bolos, tortas,
sanduíches e outros alimentos calóricos. Mas não é a exclusão do
glúten em si que traz o resultado.
Quanto
à lactose, as acusações são de que a ingestão de leite e seus
derivados causam desconforto e distensão abdominal em função da dificuldade
do intestino em digerir a substância. Todavia, apenas quem sofre de
intolerância à lactose apresenta o problema, pois justamente entre essas
pessoas falta no intestino delgado a enzima responsável por sua digestão, a
lactase, como explica Sonia Trecco, nutricionista-chefe do Serviço de
Atendimento Ambulatorial do HC-FMUSP.
Quando
a preocupação em evitar alimentos que
possam fazer algum mal ao organismo se torna uma ideia fixa,
instala-se a ortorexia (termo
derivado do grego “orthos”, que significa correto, e “orexsis”, que
significa fome) – a obsessão pela
alimentação saudável. O distúrbio ainda não é reconhecido oficialmente
como um transtorno alimentar, mas já é acompanhado pelos especialistas e
tem até sintomas descritos. De acordo com Alexandre Azevedo, o problema
foi relatado pelo médico norte-americano Steve Bratman, em 1997, e diz
respeito à necessidade rigorosa de seguir uma dieta seletiva e considerada
saudável. “Só que essa necessidade de selecionar os alimentos ganha uma
proporção obsessiva, tornando-se uma fixação”, diz.
Nada
contra a ecologia e o consumo consciente, muito pelo contrário. Mas
atenção para indivíduos que querem ter absoluto controle sobre a
procedência dos alimentos, desde o plantio ou a industrialização até a
maneira como foi manipulado e preparado. Não é incomum
que ortoréxicos se afastem dos amigos e da família para evitar
contato com alimentos que não consideram adequados. Ou que acabem aderindo
a alguma dieta radical obscura.
O
equilibrio ficou no passado
Ao
mesmo tempo que cresce o número de ortoréxicos, como atesta Priscila,
também cresce a proporção de brasileiros que se alimentam mal e estão
acima do peso. Em face de tantos extremos, parece contraemergir uma
tendência de recorrer aos hábitos alimentares de nossos avôs e às
tradições culinárias.
A
nutricionista Ana Paula Machado Lins, do Grupo de Obesidade e Transtornos
Alimentares do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (Iede)
do Rio de Janeiro, ressalta que há uma corrente que defende que
o equilíbrio está em comer como há algumas décadas, ou seja, “comida
de verdade”, preparada em casa, sem corantes nem aditivos
químicos, cultivados na natureza, e não entregues por alguma
indústria alimentícia em embalagens “mirabolantes”.
Os
hábitos de consumo da vida moderna também estão no alvo das críticas
feitas por Sonia Trecco: “Hoje, com 51 anos, lembro que quando eu era
criança, por volta dos 6, 7 anos, não havia pessoas com sobrepeso ou
obesas. Também não havia ainda supermercados. Fazia- se compras na
feira, na mercearia, de produtos como arroz, feijão, óleo, açúcar, farinha
e margarina, e no açougue. O leite era entregue em casa e os refrigerantes
vinham em uma garrafinha de 290 mililitros, e não em embalagens de 2,5 litros”.
Na
mesma linha, a pesquisadora da UnB defende o resgate dos hábitos de
consumo que sempre fizeram parte da cultura brasileira. “As pessoas
geralmente acreditam que a alimentação saudável é algo distante do
que o que estão acostumadas a consumir”, afirma. Essa retomada inclui voltar a comer arroz e feijão, uma
combinação cada vez menos presente à mesa, além de frutas, hortaliças e leguminosas, fartamente disponíveis no país.
Pollan, que chegou a escrever regras de alimentação para facilitar a vida
daqueles que se encontram perdidos, descreveu em seis palavras o que ele julga
ser o melhor e o mais simples conselho: “Coma comida; coma pouco; sobretudo
vegetais”.
LEIA O ARTIGO COMPLETO: http://revistaplaneta.terra.com.br/secao/saude/paranoia-alimentar
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