Sucateamento do SUS é
consequência da lógica capitalista e sua influência na política: Mestra e doutora em
Saúde Pública diz que a crise que pode desmontar o setor no país vem desde a
criação do SUS, pela Constituição de 1988: "nunca houve planejamento"
(Por Patricia
Fachin, em 16/05/2017 – Revista IHU, Instituto Humanista Unisinos)
À
esquerda e à direita, o desenvolvimento de um projeto para o Sistema Único
de Saúde – SUS ficou "no meio do caminho" e ele é incluído
"obrigatoriamente" nas plataformas eleitorais como um programa
"de ações assistenciais para os pobres", que são definidos como
aqueles que "não podem pagar", avalia Lígia Bahia, médica
sanitarista, na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU
On-Line.
Lígia
Bahia é graduada em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, mestra e doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente
é professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Num
momento em que o país todo assiste às denúncias e desdobramentos da Operação Lava Jato e às
irregularidades ocorridas entre o setor público e o setor privado nos casos de
corrupção, Lígia pontua que "os
investimentos que seriam essenciais para adequar e modernizar a rede pública
foram mínimos, racionados e alocados segundo critérios muitas vezes não
estratégicos. A construção de unidades novas e o sucateamento das tradicionais justifica-se antes pela
lógica das necessidades das empreiteiras e das inaugurações
político-partidárias do que pelas de saúde".
Apesar
do atual cenário de degradação do SUS, Lígia Bahia esclarece que
a crise não é consequência somente da
falta de investimento dos últimos anos. Ao contrário, a crise do SUS encontra suas raízes já na "aprovação
do SUS na Constituição", porque desde aquela época, diz,
"nunca houve planejamento" para o desenvolvimento desse sistema.
"O subfinanciamento, a eleição do Collor, a pesadíssima oposição à
Seguridade Social, inclusive enunciada pelo Sarney, impuseram outra lógica
à política de saúde, saiu de cena a esfera federal que teria capacidade
estratégica de orientar os rumos de um sistema nacional e ficaram como
protagonistas os prefeitos e governadores", informa.
Infelizmente,
avalia, nos últimos anos os governos "mais do que incentivaram,
agradeceram a existência" dos planos de saúde e "decretaram que sem
os planos privados o Brasil estaria em um beco sem saída na saúde". Com
isso, ressalta, "fizeram um imenso
desfavor para a saúde pública ao considerá-la assessória ao setor privado.
Os
governantes ignoram propositalmente todo o conhecimento acumulado sobre o tema
e, sustentados no senso comum, terminam por acreditar que o SUS original é uma
bobagem de uns tantos sanitaristas". Entre as consequências dessa
política, frisa, houve a "constituição de grandes grupos econômicos no
setor assistencial, financeirização da saúde e até a corrupção e a perda
de quadros sanitaristas para o setor privado. Houve liberação de créditos,
empréstimos e políticas públicas que alavancaram grandes negócios e em troca de
financiamento de campanhas".
CONFIRA
A ENTREVISTA:
Qual é a atual
situação do SUS no Brasil?
O SUS ficou
no meio do caminho, tornou-se um consenso, setores à direita e à esquerda o
incluem obrigatoriamente em suas plataformas políticas e eleitorais. Mas o
consenso não é em torno do SUS constitucional e sim de ações
assistenciais para os pobres (definidos como os que não podem pagar). Esse
consenso, contudo, tem matizes. Por exemplo, medicamentos caros devem ser
gratuitos para ricos e pobres. E os serviços de excelência da rede SUS também
devem admitir ricos, inclusive aqueles que podem passar à frente na fila.
Portanto, uma metáfora sobre a situação do SUS é a de um abrangente e generoso
projeto que ficou de pé, porém foi destituído dos conteúdos universalistas e
democráticos originais.
Quando se trata de
discutir melhorias e investimentos no SUS, que questões fundamentais devem ser
consideradas?
Todas,
literalmente todas. Não houve investimentos propriamente ditos no
SUS. O SUS ficou para trás, tanto no que se refere às
inovações tecnológicas (seja em produtos e em processos) e também na necessária
e incontornável potência para lidar adequadamente com a angústia, a dor, o medo
dos pacientes e seus familiares. Os investimentos que seriam essenciais para
adequar e modernizar a rede pública foram mínimos, racionados e alocados
segundo critérios muitas vezes não estratégicos. A construção de unidades novas
e o sucateamento das tradicionais justifica-se antes pela lógica das
necessidades das empreiteiras e das inaugurações político-partidárias do que
pelas de saúde.
No
início deste ano o Brasil assistiu à crise da saúde pública no Rio de
Janeiro, que se manifestou na paralisação de funcionários do Hospital Estadual
Getúlio Vargas, em atrasos salariais e no funcionamento de unidades com apenas
30% do efetivo de médicos considerado necessário.
Qual é a situação do
SUS no Rio de Janeiro e por que se chegou a esse cenário?
A
primeira parte da pergunta diz respeito ao fato de que o Rio de Janeiro,
especialmente o antigo estado da Guanabara, hoje cidade do Rio de Janeiro,
foi sede de grandes unidades públicas de saúde. Para que essa rede continuasse
a funcionar plenamente e se adequasse ao SUS, seria imprescindível que o
projeto SUS original se efetivasse. A transição do modelo seguro social para o
de sistema universal, especialmente na cidade que abrigou a sede dos institutos
de aposentadorias e pensões, teria que ser muito bem planejada.
Mas,
desde a aprovação do SUS na Constituição, nunca houve planejamento.
O subfinanciamento, a eleição do Collor, a pesadíssima
oposição à Seguridade Social, inclusive enunciada pelo Sarney, impuseram outra
lógica à política de saúde. Saiu de cena a esfera federal que teria capacidade
estratégica de orientar os rumos de um sistema nacional e ficaram como
protagonistas os prefeitos e governadores.
A
segunda parte da questão refere-se à situação atual da saúde pública
do Rio de Janeiro, que enfrenta dificuldades específicas com a decretação
de falência do Estado. O problema é particularmente grave porque se sobrepõe ao
contexto desfavorável crônico. É como se fosse a agudização de uma doença
crônica, que é perigosa porque ocorre em um paciente que já está debilitado.
Mas é importante lembrar que a falência do Estado incide sobre todas as áreas
sociais e que talvez seu efeito mais dramático não seja sobre a saúde e sim
sobre a educação. A Universidade Estadual do Rio de Janeiro e suas unidades de
ensino, inclusive sua escola de ensino fundamental, só agora retomaram as
atividades acadêmicas.
Recentemente foi
publicada uma notícia de que 1.158 novas unidades do SUS estão fechadas por
falta de verba de custeio ou falhas no planejamento dos governos. Como avalia
que tem se dado a gestão e o planejamento do SUS ao longo dos últimos anos?
Quais são as falhas ou equívocos no planejamento? Como o fechamento dessas
unidades compromete o atendimento nos grandes hospitais?
Exatamente,
inaugurar unidade de saúde pode ser mais problema do que solução. Mas para se
contrapor à racionalidade das inaugurações, é preciso ter muita
competência técnica e apoio político. Infelizmente os dois fatores raramente
estiveram conjugados nas distintas gestões da saúde tanto na esfera federal
quanto nas subnacionais. Sobre a relação entre unidades ambulatoriais e
hospitalares, existe um certo equívoco.
A
ideia segundo a qual o atendimento ambulatorial funciona como um anteparo para
as demandas por assistência hospitalar é errônea. Na medida em que mais pessoas
forem atendidas e houver diagnósticos precoces, pode até aumentar a necessidade
de internações. O equilíbrio só ocorre se houver oferta
adequada tanto de consultas e exames quanto de leitos, inclusive de
terapia intensiva. Ou seja, o ambulatório não elimina a necessidade de
hospitais, o que deveria acontecer é que o perfil de atendimentos fosse
adequado a cada tipo de instituição.
Mas
é claro que se unidades fecharem, a população recorrerá àquelas que estiverem
funcionando, inclusive em busca de orientação para assuntos como: onde se
vacinar contra a febre amarela; como fazer para o "dia de trabalho"
não ser descontado etc.
Há uma crítica de que
os últimos governos incentivaram mais os planos de saúde privados do que
investiram no SUS. Concorda com essa crítica? Por que isso ocorre e quais suas
consequências?
Mais
do que incentivaram, agradeceram a existência, decretaram que sem os planos
privados o Brasil estaria em um beco sem saída na saúde. Ou seja, fizeram um
imenso desfavor para a saúde pública ao considerá-la assessória ao setor
privado. Os governantes ignoram propositalmente todo o conhecimento acumulado
sobre o tema e, sustentados no senso comum, terminam por acreditar que
o SUS original é uma bobagem de uns tantos sanitaristas. Daí a
estimular objetivamente o setor privado é um pulo.
As
consequências são tenebrosas, vão desde a constituição de grandes grupos
econômicos no setor assistencial, financeirização da saúde e até
a corrupção e a perda de quadros sanitaristas para o
setor privado. Houve liberação de créditos, empréstimos e políticas públicas
que alavancaram grandes negócios e em troca de financiamento de campanhas. Um
processo avassalador que carrega consigo a perspectiva de melhores salários do
que os praticados no setor público e, portanto, sequestra não apenas quadros
técnicos, mas também influencia o modo de pensar e as práticas da saúde pública".
Um
detalhe que não deve ser negligenciado é o atendimento de autoridades públicas
em dois hospitais privados localizados em São Paulo. A existência de unidades
de saúde exclusivas para ricos, com tão alto grau de segregação, não é uma
jabuticaba, mas é uma característica de países de renda baixa com regimes
autoritários.
Recentemente a
senhora declarou que o Poder Executivo é muito centralizador em relação ao
orçamento e à normatização da saúde. Quais são os problemas que evidencia nesse
sentido e de que modo o Executivo deveria atuar?
O Poder
Executivo deveria ser o órgão planejador e não executor. O que aconteceu
ao longo do tempo é que antigas estruturas como aquelas responsáveis pelo
combate a endemias, como malária, foram extintas. De acordo com as diretrizes
de regionalização e descentralização, essas atividades deveriam ser
planejadas pelo nível central e por estados e municípios e executadas por
autoridades sanitárias regionais.
Mas,
o processo posterior foi diferente do proposto pela Constituição.
O Ministério da Saúde absorveu mal antigos programas verticais,
criticáveis pela fragmentação, incapacidade de adequação às necessidades locais
e superposição de atividades e ainda criou outros como o da AIDS. Além
disso, passou também a intervir de modo extremamente centralizador na oferta de
ambulâncias e até unidades de urgência como as UPAS.
Consequentemente,
o que era para ser um processo de conformação de regiões de saúde, tomou rumos
diversos. O Ministério da Saúde assumiu o papel de comprador de
serviços de secretarias de saúde. Ao invés de planejar, passou a controlar o
fluxo de repasses financeiros.
Que percentual do
orçamento brasileiro deveria ser destinado ao SUS para de fato atender a sua
proposta?
Nesse sentido, em que consistiria um
financiamento adequado para o SUS? Alguns defendem a criação de uma nova
contribuição para financiar o setor. Como vê essa ideia?
Durante
mais de 20 anos a luta por mais recursos para a saúde foi a bandeira sob a qual se
abrigaram desde sanitaristas até empresários. Mas fomos derrotados em 2012,
durante o governo Dilma. Uma derrota muito séria, especialmente considerando as
jornadas de 2013 e suas demandas por um SUS de qualidade.
Estivemos
juntos nessa batalha, mas sabíamos que o Brasil gasta mais de 8% do PIB com
saúde, proporção similar à do Reino Unido. Portanto, o problema não se
situa apenas no volume de gastos e sim na natureza das fontes e usos. A maior
parte das despesas com saúde no Brasil é privada. Ou seja, temos um sistema
universal e um padrão de financiamento incompatível com as promessas de saúde
para todos.
Essa
é uma sinuca de bico porque para que o SUS seja efetivado é
preciso desprivatizar a saúde e isso contraria interesses dos grandes grupos
econômicos setoriais. Estamos diante de um nó que tem que ser desatado. É
ingênuo supor que mais recursos para a saúde é uma bandeira apenas da esquerda.
O setor privado também reivindica mais recursos públicos, mas para finalidades
nem sempre sinérgicas com a construção de um sistema universal.
Sobre
a criação de uma fonte específica e tributos adicionais, não é simples. A carga
tributária é relativamente elevada, especialmente se considerarmos que os
contribuintes não têm direitos sociais plenos. Nossos estudos sugerem
fortemente que antes do aumento de contribuições e impostos sobre o trabalho,
deveria haver a revogação das renúncias fiscais diretamente relacionadas com a
saúde. Essa alternativa baseada na equidade fiscal teria o mérito de reverter
os gastos públicos com ações nos segmentos de maior renda e desestimular a
privatização.
Quais medidas seriam
adequadas para resolver a crise do SUS?
A
primeira é um posicionamento político claro e coerente favorável ao SUS
constitucional. A segunda é a desprivatização, por meio da efetiva supressão de
estímulos simbólicos e financeiros públicos para empresas privadas. A terceira,
uma gestão voltada à saúde, incluindo desde a formação de recursos humanos,
inserção profissional baseada nas boas condições de trabalho e remuneração até
uma burocracia estável e profissionalizada.
A
quarta, uma comunicação correta com a população sobre problemas de saúde e
atendimento. O uso e abuso da "marquetagem" em uma área tão
séria e sensível como a saúde é um problema em si. Quem lembra do IDSUS,
prazos para atendimento, rede cegonha, entre outros, lançados em estilo
propaganda cara como "a solução" para a melhoria da qualidade?
E
por fim, mas não menos importante, retomar o conceito ampliado de saúde, o
que significa objetivamente articular as políticas de saúde com todas as áreas
envolvidas, com as condições de vida e trabalho.
Quais as implicações
da PEC 55 para o SUS?
As consequências
da PEC 55 serão desastrosas, agravará a recessão, na medida em que imporá
gastos adicionais com saúde aos já minguados orçamentos familiares. O SUS já
subfinanciado oferecerá ações de saúde ainda mais racionadas e de pior
qualidade e não haverá para onde correr porque os planos privados tampouco
garantem coberturas abrangentes.
Adicionalmente
é importante lembrar que a PEC 55 penaliza também políticas públicas essenciais
para a saúde como as de transporte, moradia, saneamento entre outras. Como
todos sabemos, a principal política social é a garantia de trabalho digno, que
foi completamente desfigurada com a aprovação da reforma trabalhista e será
ainda mais destruída se for aprovada uma reforma da previdência como a que está
tramitando no Congresso Nacional.
Além
do desemprego, das ameaças ao emprego minimamente protegido e redução da renda,
ainda haverá cortes em áreas estratégicas para a saúde como ciência e
tecnologia.
Nas manifestações de
2013, uma das pautas presentes foi justamente a saúde. Qual sua leitura dessas
manifestações e dessa reivindicação em particular?
Estive
em várias manifestações em 2013 no Rio de Janeiro e me parece
que havia, entre muitas expressões de posicionamento político e identitário, a
predominância das reivindicações por políticas públicas, especialmente saúde e
educação universais.
A
pauta anticorrupção estava plenamente explicitada, mas não era a única a
galvanizar a mobilização dos milhares de jovens que foram às ruas e ocuparam
escolas, havia uma pressão pela priorização de políticas sociais cidadãs. Me
parece que essa pressão difusa foi muito mal interpretada pelo governo Dilma.
A
resposta para as demandas por um SUS de qualidade foi a edição de mais um
programa vertical, o "Mais Médicos", que, embora portador de méritos
inquestionáveis, tem caráter focalizado e verticalizado.
Deseja acrescentar
algo?
Não
poderíamos deixar de comentar que o Ministro Ricardo Barros declarou explicitamente
sua discordância com o SUS universal. Sua proposta de planos baratos,
posteriormente alcunhados por algum marqueteiro ou comunicólogo de acessíveis
não tem nenhuma sustentação técnica. É diretamente extraída da errônea
ideologia pró-mercado, da acepção errônea da competição como passe de mágica
para resolver tudo.
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