Instituto Butantan espera aval para testar em
humanos remédio que pode curar tipos de câncer.
31/10/2014 - Por Flávia Milhorance, O Globo.
Medicamento com saliva da
carrapato, descoberto por acaso, reverteu tumores de pele, rim e pâncreas em
animais
RIO - O Brasil está mais perto de desenvolver sua
própria terapia contra o câncer, numa batalha em que o país ainda é
coadjuvante, já que ela requer investimento às vezes bilionário e alta
tecnologia. Mas uma pesquisa realizada integralmente em solo brasileiro pelo
Instituto Butantan, de São Paulo, está prestes a entrar na última fase e gera
grande expectativa entre cientistas. Inclusive porque a arma de combate ao
câncer é um tanto inusitada e foi descoberta por acaso: uma molécula extraída
da saliva do carrapato-estrela com ação contra tumores do tipo melanoma (pele),
pâncreas e renais.
— O diferencial desta abordagem é que conseguimos
matar as células tumorais, sem oferecer perigo para as células saudáveis —
comentou Ana Marisa Chudzinski-Tavassi, responsável pelo Laboratório de
Bioquímica e Biofísica do Instituto Butatan.
A pesquisa, que vem sendo realizada há mais de uma
década, pedirá agora autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) para experimentar a molécula em humanos, na fase chamada teste clínico.
Isso significa que ela foi reconhecidamente bem-sucedida em todas as outras
etapas, quer dizer, em testes in vitro em laboratório, em animais e em células
humanas. Em geral, a grande maioria das pesquisas com foco terapêutico empaca
na fase de testes com animais.
ASSÉDIO DE GRUPOS DE PESQUISA
Ana Marisa Chudzinski-Tavassi não esconde a
animação com o progresso desse projeto e conta que vem sendo assediada por toda
parte:
— Confesso que está bem legal. Empresas e
universidade do Brasil e de outros países estão fazendo contato. Há colaboração
de muita gente.
A pesquisadora lembra que o processo começou
despretensiosamente em 2003, quando uma aluna de mestrado passou a estudar a
bioquímica do carrapato-estrela (Amblyoma cajennense), que pode transmitir a
febre maculosa, uma doença mais comum na zona rural. Na ocasião, eles buscavam
novos agentes para inibir a coagulação sanguínea e sabiam que o carrapato, por
se um parasita que se alimenta de sangue (hematófago), provavelmente teria
componentes eficientes para a tarefa.
Durante as análises do sequenciamento genético da
espécie, eles se depararam com uma molécula na glândula salivar do aracnídeo
que tinha esta característica e que ainda não havia sido descrita na literatura
médica. Com mais estudos de sua estrutura, descobriram que ela integrava uma
classe que já estava sendo descrita em outros estudos como capaz de inibir a
proliferação celular. Foi quando a pesquisa mudou o foco e passou a investir
energia para analisar sua ação contra os tumores.
O Instituto Butantan firmou uma parceria com a
empresa brasileira União Química Farmacêutica com o objetivo de desenvolver uma
fórmula para ser utilizada nos testes. A molécula já não era mais extraída do
carrapato, mas produzida em larga escala em laboratório por meio de um sistema
de expressão de proteínas recombinantes, ou seja, manipulando bactérias ou
leveduras para imitar suas propriedades. Os pesquisadores obtiveram ainda a
patente da molécula, batizada de Amblyomin-X, registrada no Instituto de Propriedade
Industrial (INPI). Além disso, o estudo está sob proteção do Patent Cooperation
Treaty (PCT).
— Isso nos deu mais segurança para trabalhar sem
pressa e, inicialmente, num processo sigiloso, já que a molécula tem este
grande potencial terapêutico. Fomos divulgando as informações aos poucos —
explica Ana Marisa.
A pesquisa custou até o momento em torno de R$ 20
milhões, investidos pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico (CNPQ) e,
principalmente, o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES). Caso seja aprovada
para testes em humanos, o montante empregado será bem maior, mas ainda não há
uma estimativa. A título de comparação, em grandes indústrias farmacêuticas
internacionais, o desenvolvimento de novas drogas contra o câncer pode superar
US$ 1 bilhão.
— Nem 1% dos ensaios básicos de laboratório chega
ao paciente. Por isso, é realmente um grande passo — avaliou o farmacêutico
Robson Monteiro, professor associado do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ.
— Será muito interessante se tiver sucesso em humanos, principalmente porque
todos os processos estão sendo feitos no Brasil, desde a demonstração da
molécula na saliva até sua produção artificial e a conclusão dos testes pré-clínicos.
Monteiro integra o Laboratório de Trombose e Câncer
da universidade e também trabalha com os hematófagos, grupo que inclui ainda
morcegos, sanguessugas e alguns insetos. O laboratório, por exemplo, já
analisou a molécula ixolaris, presente em outra espécie de carrapato, que
apresentou efeito contra a trombose e o câncer.
— Tivemos resultados positivos, mas neste caso não
avançamos para testes em humanos, porque isto demandaria produção em larga
escala da proteína. Além disso, o National Institute of Health (NIH), dos
Estados Unidos, já tinha a patente da molécula — afirma Monteiro, que defende a
pesquisa com os hematófagos. — Esses seres têm moléculas muito diferentes e
interessantes. Algumas propriedades já foram verificadas, como a antitrombótica,
mas certamente há outras ainda a serem descobertas — anima-se.
Monteiro também explica que a trombose e o câncer
têm estreita relação: por um lado, pacientes com câncer têm mais propensão à
trombose (que é a coagulação dentro dos vasos sanguíneos), e a ocorrência de
trombose durante o câncer faz com que o tumor se torne mais agressivo. Esse
conhecimento, agora com as novas informações da pesquisa do Butantan, podem
abrir uma nova linha de pesquisa.
Apesar da empolgação dos cientistas, os testes em
humanos são uma fase tão arriscada quanto as demais e podem não surtir o efeito
desejado. Mas, até agora, os testes tiveram bons resultados quando avaliados em
camundongos e, depois, em animais mais complexos, como coelhos.
MECANISMO AINDA MISTERIOSO
Nesta etapa, a fórmula foi testada em animais
saudáveis e com câncer. Os pesquisadores notaram que ela tinha ação apenas nos
animais doentes, enquanto que nos demais a substância era eliminada pela urina.
Além disso, a reação só ocorria em células tumorais, sem qualquer efeito sobre
as normais. As cobaias começavam a melhorar depois de 14 dias de injeções
diárias, e os tumores desapareciam após cerca de 40 dias de tratamento. Os
mamíferos foram acompanhados por seis meses, período em que não houve recidiva,
ou seja, a volta do tumor maligno. Os cientistas descobriram que a Amblyomin-X
consegue inibir, dentro da célula, o chamado proteassomo, estrutura responsável
pela “limpeza celular”. E essa inibição leva à morte das células, no caso, das
tumorais.
— Como a molécula faz essa seleção entre a célula
tumoral e a normal ainda está sendo estudado. Precisamos desvendar este
mecanismo — diz Ana Marisa.
O motivo por que ela teve ação sobre tipos
específicos de câncer foi uma escolha dos próprios pesquisadores, que decidiram
focar naqueles de mais difícil tratamento, como o de pâncreas. De difícil
detecção e comportamento bastante agressivo, este tipo de tumor apresenta alta
taxa de mortalidade. No Brasil, 7.726 pessoas morreram em 2011 por causa dele,
segundo os dados mais atualizados do Instituto Nacional do Câncer (Inca).